O ballet “Satanella”, como é mais conhecido, na sua versão clássica e completa já não é dançado há muitas décadas, mas a sua importância está sempre presente, pois é muito conhecido e dançado o “Satanella Pas de Deux”, ou “Carnaval de Veneza”, oriundo de sua versão completa.
História
O ballet é baseado no romance do escritor francês Jacques Cazotte (1719–1792), chamado: “Le Diable Amoureux”, ou “O Diabo Apaixonado”, lançado em 1772. Esse romance, segundo o crítico P.G. Casteux, deu início à era fantástica da literatura francesa.
O coreógrafo francês Joseph Mazilier (1801–1868) foi o primeiro a usar o livro “Le Diable Amoureux” como base para um ballet. Ele mesmo se responsabilizou pelo libreto, tornando-se coautor do mesmo, e chamando o grande dramaturgo francês Jules-Henri Vernoy de Saint-Georges como principal autor do libreto. O resultado foi um Ballet-Pantomima em 3 atos e 8 cenas, com música de François Benoist para o 1º e 3º atos e Napoléon Henri Reber para o 2º ato.
O ballet estreou em 23 de Setembro de 1840 no Ballet du Théatre l’Académie Royale de Musique, hoje “Opéra de Paris”, com décors de MM. Philastre e Cambon.
Para o ballet, o enredo do livro foi modificado, assim como o nome dos personagens principais: Álvaro virou Frédéric, Biondetta tornou-se Uriel/Urielle.
Personagens:
Belzebu, o rei do Inferno.
O Conde Frédéric.
Hortensius, o governante/médico.
Simplice, jovem servo do conde.
Bracaccio, chefe dos piratas.
O grande meirinho (oficial de justiça).
Um senhor.
Dois Piratas
Um Padre.
O grão-vizir.
Phoebée, uma cortesã amante do conde Frédéric.
Urielle, demônio feminino.
Lilia, irmã de leite do conde.
Thérésine, sua mãe.
Janetta/Zanetta, jovem serva.
Une Diablesse – uma pequena diabinha.
Enredo:
Ato I
Cena 1:
Festa nos jardins do castelo de Phoebée. Conde Frédéric, seu amante, e Hortensius, governante do Conde, encontram-se ao lado dela. Lilia, uma camponesa, chama a atenção do Conde. Ele vai conversar com ela. Phoebée sente ciúmes e vai buscá-lo.
Frédéric se aproxima de Lilia novamente, ele só a reconhece quando esta se aproxima de sua mãe, Théresine, a babá do Conde na infância. Lilia é a sua irmã de leite. Ele beija a sua mão.
Phoebée reaparece e diz a Frédéric para dar ouro para a menina, mas não beija-la. Ele lhe dá um rico anel, Lilia sai. Briga de ciúmes entre os dois amantes, Phoebée termina com Frédéric, o que agrada Hortensius.
Phoebée faz ciúmes em Frédéric com outros convidados. Frédéric se revolta e vai para a mesa de jogos, Hortensius tenta impedir. Frédéric não pára de jogar até o momento em que perde tudo o que tem, para a tristeza de Lilia, que assiste a tudo, e inquietude de Hortensius. Ele sai da mesa, sendo seguido pelos outros jogadores e Phoebée. Os jogadores cobram dinheiro de Frédéric, que não tem nada. Lilia corre até ele e lhe entrega o anel, uma cruz e outras joias. Ele, emocionado, aceita a cruz e um rosário, que serve de corrente. Ele beija as joias e guarda próximo ao coração. Hortensius o tira de lá o empurrando.
Cena 2:
Antiga biblioteca gótica, localizada em uma torre de uma antiga mansão pertencente ao Conde Frédéric. Em cima da lareira há uma pintura que retrata Belzebu colocando um diabo em forma de pajem para servir um antepassado do conde.
Janetta e Simplice, servos da mansão, entram. Barulho na porta, com medo, Janetta vai abrir. É Frédéric e Hortensius. Janetta vai acender a lareira. Frédéric lamenta ter perdido tudo. Hortensius diz que ele está lá e pega alguns livros para acalmar o conde. O conde só se interessa ao encontrar um manuscrito que ensina a evocar o senhor das trevas. Hortensius tem medo, Frédéric diz que só o diabo pode lhe ajudar agora, que ele o fará seu escravo como na pintura. Desenha um círculo, se põe no meio e evoca o diabo. Trovões, raios, as luzes se apagam, Frédéric desmaia.
O Belzebu aparece vindo da lareira. Aos seus pés, Urielle, diabo feminino. Belzebu acha Frédéric indigno dele, ordenando que Urielle fique com ele na forma de um pajem, obedecendo-o, para levar sua alma depois, assim como na pintura. Urielle, insatisfeita de ter que esconder seu sexo, obedece. Belzebu desaparece, a torre volta ao normal e Frédéric acorda.
O conde quer testar seu poder e ordena um banquete para ele e Hortensius. O pajem os serve. Frédéric bebe até adormecer, Hortensius bebe, mas não adormece. O diabo, impaciente por não conseguir embebeda-lo, com um gesto o faz cair dormindo. O pajem vira Urielle, que dança atraentemente para seduzir o conde em seus sonhos, termina tocando a sua testa com seus lábios. O conde acorda e procura pela criatura graciosa que viu nos sonhos, acordando Hortensius. O governante aponta para uma cômoda, e lá estava o pajem, não Uriele.
Chegam os credores. O pajem abre a porta, pede que os credores apresentem os títulos das dívidas, depois faz todos congelarem, assim como Hortensius. Com um sinal, surgem vários sacos de dinheiro na cômoda. Ela coloca um na mão de cada credor, mas quando eles vão contar, tudo vira fumaça. Eles querem atacar Frédéric, o diabo mostra que todos os títulos estão pagos e sai de cena rindo com Frédéric.
Fim do I Ato.
II Ato
Cena 3:
Festa no castelo do conde: orgia, bebida e jogo. Phoebée chega e dança. O pajem, com ciúmes, vai dançar com o conde, que é enfeitiçado e não consegue acabar com aquela dança estranha. No final, ele fica a sós com Phoebée, em um sofá. O pajem faz a imagem de Lilia aparecer, o conde vai atrás dela.
Lilia chega com a sua mãe. Phoebée aparece, com ciúmes, pega um punhal e corre para atacar Frédéric, Lilia entra na sua frente e recebe o golpe por ele. Chega uma multidão, o grande meirinho e outros oficiais da lei. O diabo pega na mão de Frédéric e desaparece com ele.
Cena 4:
O mar e algumas casas de pescadores. No fundo, em cima das rochas, uma capela.
Chega Bracaccio, chefe dos piratas, e seus piratas. Em uma casa, Hortensius cuida de Lilia. Chega Frédéric e a pede em casamento. Ela aceita e começam os preparativos. Urielle se desespera. Phoebée está passando, vê o jovem pajem e pergunta pelo conde. O pajem responde que ele está prestes a se casar com Lilia. Diante da descrença de Phoebée, num sinal do pajem, a janela da casa de Theresine se abre e pode-se ver a jovem Lilia vestida de branco e Janetta lhe colocando o véu de noiva.
Phoebée oferece um saco de ouro para Bracaccio raptar Lilia. Quando Lilia sai de casa para o casamento, Bracaccio a captura. Urielle oferece mais dois sacos de ouro para os piratas levarem, além de Lilia, Phoebée. Eles o fazem.
O conde Frédéric desce da capela e vai até a casa buscar sua noiva. O diabo está em seu lugar. Começam as primeiras bênçãos e o diabo começa a ficar inquieto. Chegando na igreja, quanto mais Urielle adentra o templo sagrado, mais a música muda. Quando ela está prestes a subir no altar, trovões são escutados, as velas da igreja se apagam, a porta fecha violentamente e Urielle cai desfalecida. Todos saem correndo da igreja, com medo. Frédéric leva a noiva até um banco e vê que ela é o diabo.
Simplice estava no mar e vê o rapto de longe. Ele aparece para contar para Frédéric, que pula em um navio e vai atrás dos piratas, junto com outras pessoas. As mulheres começam a rezar. O banco em que Urielle se encontrava é rodeado de fogo e desaparece para as entranhas da terra.
Fim do II Ato.
Ato III
Cena 5:
Inferno.
Urielle aparece no banco onde Frédéric a deixou. Belzebu não acredita na capacidade de Urielle trazer a alma de Frédéric, mas ela garante ser capaz. Belzebu lhe dá três dias para fazer com que o conde assine o pacto, um rolo de papel. Ela retorna para a terra.
Cena 6:.
Interior de um rico bazar cheio de escravos em Isfahan, atual Iran.
Bracaccio, chefe dos comerciantes no bazar, traz novos escravos para vender. Obriga as mulheres a dançarem com os outros escravos. Lilia chora. Ouve-se um canhão, um navio europeu, é Frédéric com outros marinheiros. Começa o leilão, Bracaccio deixa as duas mais belas por último (Phoebée e Lilia). Frédéric vê Lilia, o leilão já começou. Ele dá sempre um lance mais alto, até aparecer o Grão-Vizir. O conde não tem como oferecer mais dinheiro que o Grão-Vizir.
Ele se volta e vê Urielle, pede-lhe ajuda, ordena que ela encontre ouro para salvar Lilia. O espírito do inferno se recusa a ajudar. O Grão-Vizir ganha e leva Lilia para a hospedaria.
O conde Frédéric cobra de Urielle uma atitude para salvar Lilia, ele diz que dá todo o seu sangue e vida para salvá-la, mas o demônio diz que quer mais, quer a sua alma, mostrando o rolo de papel. O conde se recusa a assinar até o momento em que vê o Grão-vizir saindo da hospedaria com seus eunucos transportando Lilia em um palanquin. Ele então pega o papel e assina o pacto.
Urielle se mostra vestida ricamente, começa uma bela música e ela dança, chamando a atenção de todos. O Grão-vizir se sente seduzido e quer aquela escrava. Ela diz que pertence a Frédéric e depende dele. O Grão-vizir pergunta ao conde o que ele quer em troca daquela escrava, ele aponta para Lilia. A troca é feita. O conde corre para o seu navio com Lilia e é seguido pelos outros marinheiros. No momento em que o Grão-Vizir colocaria Urielle no palanquin, ela desaparece. Ele fica furioso. Nesse momento passa Bracaccio com Phoebée. O Grão-Vizir leva Phoebée como sua escrava.
Cena 7:
A torre do primeiro ato.
Frédéric e Lilia estão juntos. No dia seguinte será o casamento. Ele está pensativo, ela fica inquieta. Ele a acalma e ela vai para o seu quarto. Frédéric fica sozinho. Urielle chega segurando o pacto em uma das mãos. Ele quer saber por que ela está fazendo aquilo. Urielle confessa o seu amor por ele.
A mulher-demônio começa a arrastar o conde com sua força, quando entra Lilia e se joga aos pés de Frédéric. Com um único gesto, Urielle empurra Lilia. Quando o conde vê que está perdido, ele tira a sua adaga para golpear o próprio coração. Urielle, com um gesto, pára a mão do conde.
O bem e o mal começam a brigar no coração de Urielle. Surgem novos sentimentos, e então a alma de mulher vence a do diabo. Prevalecem o amor e a compaixão. Ela então diz que se perderá por ele, mas que o salvará e o deixará ser feliz. Ela joga o pacto na lareira e morre no mesmo momento em que as chamas se apagam.
Lilia recobra os sentidos e é tomada de emoção junto com Frédéric. Ela começa a rezar aos céus por Urielle, o conde pega a cruz e o rosário que recebeu de Lilia no primeiro ato e põe sobre o coração de Urielle.
Cena 8:
No Inferno.
Belzebu está rodeado de demônios. Um enorme demônio traz Urielle em seus braços e a coloca no chão, perto de Belzebu. Os demônios se preparam para pular em cima de Urielle e devorá-la, quando, de repente, aparece um anjo, que a protege e estende a mão para ela. Urielle acorda, se vê entre os demônios e, por inspiração divina, pega a cruz e o rosário que Frédéric colocou sobre o seu peito e mostra aos demônios, que fogem horrorizados dos símbolos sagrados. Ela dá a mão para o anjo e ascende para o céu, sendo assistida com desespero e ódio pelos demônios.
Subindo, ao fundo vê-se a igreja do segundo ato e a procissão de casamento de Frédéric e Lilia.
FIM.
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O ballet obteve um grande sucesso, sendo remontado em outros palcos europeus. A estreia teve Pauline Leroux no papel de Uriel, Mazilier no papel de Álvaro/Frédéric e Louise Fitz– James no papel de Lilia.
Costumes para a estréia:
1 — Costumes de Satanella
2 — Costume de um dos escravos
3 — Lilia — Louise Fitz-James
4 — Urielle — Pauline Leroux
Em 10 de Fevereiro de 1848, menos de um ano após a chegada de pai e filho na Rússia (24 de Maio de 1847), Jean Antoine e Marius Petipa estreiam a nova versão de “Le Diable Amoureux”, que chamaram de “Satanella, ou Amor e Inferno”. A heroína principal teve o seu nome mudado de Urielle para Satanella. O ballet foi feito com base na mesma coreografia e músicas do ballet de Mazilier, com orquestração feita por Aleksandr Lyadov (Liadov). Algumas fontes trazem o nome de Konstantin Lyadov (irmão mais novo de Aleksandr) como responsável pela orquestração da música, o que é um erro, pois em 1847 Aleksandr Lyadov foi nomeado regente da Orquestra de Ballet de São Petersburgo.
Como principais, estavam: Yelena Andreyanova e Marius Petipa, que teve o nome do seu personagem modificado mais uma vez, de Fredéric passou a se chamar Fabio. E Jean Petipa como Hortensius.
O sucesso foi tanto, que pai e filho foram enviados à Moscou para a remontagem do ballet, que estreou em 19 de Janeiro de 1849, com os mesmos bailarinos nos papéis principais.
Em 1859, Petipa coreografou um Pas de Deux para o Concerto de Benefício da bailarina italiana Amalia Ferraris, que nada tinha a ver com o ballet Satanella. A música utilizada é de autoria de Cesare Pugni, que tomou como inspiração alguns temas da peça de Niccolò Paganini “Carnavale di Venezia” (Op. 10). Esse Pas de Deux foi intitulado: “Carnaval de Veneza Grand Pas de Deux”.
Após algumas outras versões do seu próprio ballet “Satanella”, Petipa convida o compositor Cesare Pugni para uma nova versão, que teve a sua estreia em 7 de maio de 1868, no Teatro do Ballet Imperial de São Peterburgo. O Pas De Deux, que tinha sido coreografado 9 anos antes, foi inserido nesta nova versão, no 3º Ato, e foi chamado de “Pas de Deux Fascinação” . É essa a versão que permaneceu no repertório russo e se tornou a base para versões posteriores na Europa. E é esse o Pas de Deux dançado nos Concertos de Gala e competições mundo afora.
Em 1984, o coreógrafo russo Vassily Medvedev faz uma nova versão de Satanella para o Teatro Vanemuine, em Tartu, na Estônia, com músicas de C. Pugni, F. Benoist e N. Reber.
Em 1989, no Ballet National de Marseille, França, estreia “The Devil in Love, ou Le Diable Amoureux” coreografado por Roland Petit, com música de Gabriel Yared, libreto de Jean Anouilh e Roland Petit. No papel principal estava Alessandra Ferri.
Fatos Curiosos:
- Jacques Cazotte morreu guilhotinado em 25 de Setembro de 1792, às 19:00 horas, na Place du Carrousel, em Paris, devido à sua posição contrária à Revolução Francesa. Quando a Revolução começou, em 1789, Cazotte era prefeito do município de Pierry, Marne, região de Champagne-Ardenne, e as suas últimas palavras foram: “Eu morro como vivi, fiel ao meu Deus e a meu Rei”.
- Existem algumas outras versões de ballets baseados no romance “Le Diable Amoureux”, anteriores à versão de 1868 de Marius Petipa, como: “Satanella”, de Filippo Taglioni, “Ballet Fantástico em 6 partes”, com sua filha Marie Taglioni no papel de Satanella, feito para o Teatro La Scala em 1842. Também existe a versão do filho de Filippo Taglioni, irmão da legendária Marie, Paul Taglioni, que coreografou Satanella em 1850, em Londres, para Carlotta Grisi, remontando-o dois anos mais tarde em Berlim, para a sua filha Marie-Paul Taglioni, com o nome de “Satanella, ou Les Metamorphoses”.
Marie Taglioni e Charles Muller em “La Satanella”. DeAgostini.
- O ballet de Petipa foi nomeado, e assim ainda é chamado na Rússia, “Satanilla”, com “i”, e não Satanella, com “e”.
- É bem provável que a palavra “Satanella” derivou-se de “Satan”, o que significaria “garota-diabo”.
Pauline Leroux e M. Élie. Ato III.
Gravura de Jules-Robert-Pierre-Joseph Challamel, publicada em 1846
Aleksadr Boitsov e Irina Ushakova em Satanella Pas de Deux.
Evgenia Obraztsova e Alexander Sergeyev, 2011.
Le Diable Amoureux de Roland Petit. Clique aqui para ver mais.
Le Diable Amoureux de Jacques Cazotte, com ilustrações de Edouard de Beaumont (1845). Música de Virgil Thomson.